"O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos." (Marguerite Yourcenar)

«Adevăratul loc de naştere este acela unde pentru prima dată ai aruncat asupra ta însuţi o privire pătrunzătoare» (Marguerite Yourcenar)

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6 de mar. de 2009

CRONICA DA PRIMAVERA QUE NUNCA COMECA


Vou começar a cronica com uma advertencia: a forma não é de uma cronica e pode ser que eu falhe na tentativa pela gama de assuntos que eu quis abarcar e pelo talvez prolixo do meu discurso. Mas vale a idéia e o desafio. Continuo não me considerando um escritor (muito longe disso...) e sim apenas um músico que faz incursões pela poesia.


***


Se em alguma coisa, acima de tudo, tivesse que apontar em que mais Bucareste se assemelha a Curitiba, diria que é na imprevisibilidade do clima. Primeiro de março, simbólico inicio de primavera para os romenos. A costumeira cerimonia dos martisor, simpaticos penduricalhos que são dados para as mulheres como bagatelas ou presentes, se da num dia maravilhoso, talvez o mais quente desde quando posso me lembrar. No final do dia, quando as meninas parecem generais da banda com a quantidade de martisores dependurados, sopra um vento glacial de arrepiar e, na manha seguinte... sorria! O inverno bate a sua porta... E assim tem sido durante a semana: um alternar de sopro primaveril com borrascas súbitas.


Indo mais além (e talvez até longe demais) penso com meus botões o quanto a personalidade complexa dos romenos (e digo complexa para um brasileiro, que fique bem entendido...) não está relacionada com o clima, assim como costumamos associar a dos curitibanos com a mesma causa. Existe um que de misterioso, que não chega a ser fechado, na natureza dos romenos. Isso se reflete de maneira geral no comportamento que se identifica espontaneamente neles. Sempre reservam algo de imprevisivel no trato.


O contraponto disso talvez possa ser observado na lingua. Digo, na fluente linearidade do idioma, sem os contornos da nossa prosódia lusiada e, ainda mais, na noção de formalidade deles, um tanto quanto "dura" para os nossos padrões. Explico-me: o que para nós pode soar "áspero" ou "agressivo", normalmente é a codificação (ou tentativa) de uma busca de equilibrio necessária, assim como a afirmação de uma identidade, um tanto quanto abstrata pelo processo histórico do país.


Ok, concordo. Desviei-me do propósito inicial da cronica. Voltemos, pois, as vacas frias... Tudo isso não passa de uma tentativa de acreditar que a primavera, doce primavera, possa trazer uma luz nova para esse espírito sedento de mais boas surpresas por aqui.


Aproximando-me da etapa final da minha permanencia por essas paragens, percebo que o estagio de absorção pura está dando lugar ao de entrega. Ou seja, estou sentindo que depois de ingerir "romenidades" estou passando a "dividir" brasilidades. Inegavelmente com um tanto de alegria e surpresa, por todo canto onde passo, tenho encontrado romenos afoitos por descobrir algo dessa terra chamada Brasil, tao desconhecida para eles (não temos o direito de achar ruim que nada se saiba sobre nosso país além de samba, futebol e carnaval: foi só o que vi passar na televisão sobre o Brasil... o que de certa maneira encontra eco no insignificante conhecimento que se tem em terras tupiniquins sobre a Romênia: nada além do Dracula e da Nadia Comaneci). Um subito agradavel e violento surto de patriotismo bateu nas ventas deste que vos fala. A leitura desse blog foi além do meu circulo de amizades e, com mais surpresa ainda, tenho recebido comentarios de pessoas exteriores a ele e tambem de romenos [sim, eles tem uma facilidade invejavel para a compreensão da lingua de Camões e de Guimarães Rosa! (parentese dentro do parentese: sim, tem quem acredite que Camões e Guimarães Rosa falavam a mesma lingua...)] . Assim sendo, decisivamente aconselhado pela minha professora de musica de camara, Manuela Giosa, vou começar a ampliar um pouco as ambições dessa pequena pagina na internet, tentando dar um pouco mais de alcance no tangente as impressões sobre a terra. Talvez seja muita pretensão para limitada habilidade, mas vou tomar a tarefa, ja iniciada pelo meu amigo Fernando Klabin com seu(s) blog(s), constantes da minha lista la embaixo...


Infelizmente, carece material no tocante ao relacionamento bilateral Romênia-Brasil. A guisa de exemplo, digo que são uns poucos autores da nossa literatura que foram traduzidos para o romeno. Por conta disso tenho que ouvir, dificilmente calado, romenos associando nossa riquissima literatura com aquele pretenso escritor pseudo-mistico de talento duvidoso cujo sobrenome nos lembra um conhecido mamifero da familia dos leporideos... Machado de Assis, Mario de Andrade, Cruz e Sousa e Vinicius de Morais permanecem ignorados, assim como concordancia verbal em conversa de adolescente, conforme ja diria o nosso Juca Chaves. Mas justiça seja feita: com igual frustração reconhecemos que conceituadissimos autores romenos do naipe de Mircea Eliade e Emil Cioran são desconhecidos do tão carente leitor brasileiro. Esse vacuo permanece uma incognita, visto que estamos falando de duas linguas neolatinas não tão distantes e com literaturas prolificas e interessantes. Se por um lado seria quase impossivel traduzir alguns autores (Grande Sertão: Veredas, o melhor livro da literatura brasileira na minha modesta porém sincera opinião, ja encontra um obstaculo no titulo), e claro que falta também iniciativa por parte de quem detem os in$trumento$ necessarios para o trabalho...


Paralelamente, no terreno da musica erudita, onde piso com um pouco mais de autoridade, percebi que o nosso Villa-Lobos é o unico nome familiar a eles, mesmo dentro do campo gravitacional da Universidade Nacional de Musica, onde curso esse primeiro ano do meu mestrado. Quando tenho oportunidade, não hesito em mostrar Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, Radames Gnatalli e Claudio Santoro (para ficar apenas entre os mais expressivos) aos incessantemente deslumbrados romenos. Quando minha supracitada professora de musica de camara pediu para trabalharmos um compositor brasileiro nesse semestre, eu, exaltado pela possibilidade, vi minhas colegas percorrendo com os olhos a partitura da Segunda Sonata para Violino e Piano de Villa-Lobos com o olhar avido de quem espera encontrar um indio seminu na partitura. Mas tudo bem: elas são muito queridas e me ensinam mais romeno do que o que me é dado aprender na aula na Universidade de Bucareste (mesmo quando riem agradavel e demoradamente quando eu falo alguma coisa muito errada que as faz pensar em alguma besteira...)


Vou encerrar a narrativa de hoje com alguma coisa sobre meu cotidiano: não posso deixar de mencionar o pitoresco restaurante da favela universit...(ops!) digo, alojamento universitario do Cotroceni, para onde me mudei na ultima semana com o consenso do simpatico administrador (as instalações sao otimas, mas eu não podia perder a piada! Foi mais forte do que eu...). Nesse restaurante, que equivaleria a um bandejão popular no Brasil, a preços módicos são servidas algumas iguarias da culinaria romena: mamaliga (a famigerada polenta), um repolho cozido com um molho bem esquisito (em cada colherada é possivel se encontrar em media 10 bagas de pimenta do reino!) e cartofi prajiti (que literalmente significa "batata frita". Ok, tudo bem: não é um prato tipico, mas é consumido em quantidades expressivas. Normalmente frias e murchas, mesmo se chegarmos no horario em que o refeitório abre).


Sem mais para o momento, vou fechando a conta e passando a regua. Diferentemente do que os leitores desse texto possam inicialmente deduzir, devo advertir que o meu sentimento dominante desse lado da tela, em face do que relatei, é o de quem tem visto todas essas coisas com o mesmo tanto de deslumbramento e bom humor quanto são possiveis. Inegavel dizer que a Romênia nos entra nas veias com uma potência inelutavel...




por Raul Passos, em 06/03/2009, e pedindo desculpas pela falta de alguns acentos, pois precisa procura-los individualmente em outros textos porque a porcaria do teclado não tem.


(EM TEMPO: "porcaria" existe na lingua romena e significa "porcaria"...)