"O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos." (Marguerite Yourcenar)

«Adevăratul loc de naştere este acela unde pentru prima dată ai aruncat asupra ta însuţi o privire pătrunzătoare» (Marguerite Yourcenar)

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29 de jun. de 2017

QUADROS BUCARESTINOS II


1 – OS CIGANOS
                                   (à Érica Santana)

A última réstia vai se deitar no ocidente
e meu espírito irrequieto, em brasa
– lume ansioso que já não sabe o que espera –,
se transfigura em chama na tentativa impossível de plenitude.

O bulevar em torno é ruído, cinza e mácula.
Ali, onde uma solitária luz em vão fere a sombra,
os ciganos saem em alarde – dez, doze, quinze...
Transmutam a rua em insólito carnaval

Já não sei em que paragens deixei minha vontade
– Semente lançada ao vento sem cuidado,
foi dar um fruto ignorado em paisagens irreais –
E me abandono em sonho desperto à fantasia dos manuches.

A lua, lume imperioso, bruxuleia entre os ramos
que vêm roçar o balcão de onde assisto ao burburinho.
O cântico recomeça – dolente, misterioso, provocante –
E eu... parece que escuto uma saudade ancestral
– Confissão secreta que não faço nem ao vento –
enquanto lá embaixo, em roda, eles ensaiam
antigas fórmulas de amor e de quebranto

Os eflúvios do tabaco vão buscar no breu que tudo invade
uma pista que conduza ao outro lado

Tudo o mais parece ser engano
Ilusão, perfídia, desconsolo...
Quem dera minha alma achasse também,
nas mãos de uma zíngara indolente,
qualquer repouso ou consolação

Já não sei ser descuidado
Há muito perdi a inocência e o deslumbre
O que me instiga, arrebata e consome?
Nada, que não seja insípido e opaco entendimento...

Ah, se ao menos nessa roda, nesse canto, nesse desconjuro
Minha voz encontrasse um qualquer papel
– Uma alegria verdadeira, uma mensagem a qual carregar –
E eu já não seria o taciturno que, à espreita
– resguardado pela noite –,
nada mais pode que não seja devaneio...
... se tudo fosse diferente, e num arroubo de certeza
extasiado e em transe eu me ergueria
e as minhas asas impossíveis, em tempestade
se lançariam incautas e certeiras pelo mundo
com a fúria de mil sortilégios

Mas que sonho há que dure para sempre?
O grito, o torpor e o encantamento se emudecem
Tudo retorna ao silêncio – gênese apocalíptico –
A noite se instala na estrada e em meu pensamento.

Uma solitária cigana se recolhe à tenda...
E enquanto recolho a cinza e as certezas

A última brasa do cachimbo se amalgama à derradeira luz da rua.

                                                           BUCARESTE, 04/06/2017