por Raul Passos17 de Setembro de 2003
Não estava chovendo em Curitiba por aqueles dias. Fato que, para um montanhista, é carta branca para se embrenhar no mato. Somado a um tanto considerável de motivação, era o que faltava para que, mais uma vez, o trio (o mesmo) que se havia entrevado na travessia Itapiroca - Cerro Verde - Tucum em plena véspera de ano novo, se decidisse a enfrentar uma semana no Pico do Paraná... Ah, mas quem pode ter certeza do tempo na capital paranaense? Foi precisamente o nosso erro, ou melhor, o descuido que transformou nossa semana numa molhada epopéia.
Partimos de Curitiba no domingo, dia 13, a uma temperatura de 7 graus (ainda tépido para o inverno curitibano!). O nosso querido Aranha, para variar um pouco, com a mochila mais pesada do que ele mesmo (até hoje não consegui entender como é possível uma mochila pesar tanto. Sempre o vejo a carregar e ainda não descobri onde ele põe o chumbo!). "Meu termômetro está marcando 10", relatou ele. Os céus estavam promissores. Prometiam chuva, para nosso desespero.
Começamos a subida bastante animados. O Marcelo nos motivava ainda mais: atacaria de mestre confeiteiro fazendo uma sobremesa surpresa no cume. O Aranha subiu aos suspiros (apaixonado?). A tempos que o não via assim! Ele com certeza se utilizou desse recurso para esquecer do container que carregava no lombo. De cada 10 palavras que falava, 11 eram "ela". Eu, com a mochila mais leve, no entanto já sentia arrepios pelo aquaflex que teria de carregar a partir do A2. Habituado a carregar a comida, ainda não me entrava na telha a idéia de subir com a água.
Um pouco depois do cruzo Caratuva - PP, encontramos escoteiros. Vinham em bando. As meninas com seus travesseiros e ursinhos de pelúcia, fofinhos e cheios de pico-pico. Ainda um pouco mais à frente cruzamos com o pessoal do "Nas Nuvens", grupo de montanhismo. Todos se surpreendiam com o trio que, enquanto tantos desciam, estavam empenhados em subir e, pior, permanecer uma longa semana que já prometia ser, por assim dizer, não das mais secas!
Já começava a ventar forte e a temperatura baixava consideravelmente ao cair da noite, quando atingimos o Abrigo de Pedra, perto da última bica. Enquanto Marcelo e Aranha buscavam água, fiquei resguardado com nosso equipamento. Foi o meu pior erro: sentia o vento entrar nos ossos e aquilo foi congelando meu rosto e meus dedos. Tentei mexê-los, mas já perdiam a agilidade notória de alguém que, até o inicio da subida, era pianista por profissão. No entanto, naquele mesmo lugar senti uma sensação incrível de paz, como jamais houvera experimentado. Por vezes não se escutava sequer o vento (talvez por já me haver congelado as orelhas), mas o fato é que aquele silêncio foi uma das coisas mais sensacionais que já me aconteceram em meus 20 aninhos de vida!
Quanto mais se contempla, menos se reclama. Mas o fato é que eu teria de passar a noite inteira contemplando esse oceano de paz para não reclamar daqueles litros d'água que me ceifariam as costas nos metros restantes até o cume. Ali percebi o quanto as pedaladas que deixei de dar nas (poucas) tardes quentes de maio em Curitiba me fizeram falta. O Aranha, que subia como o próprio artrópode, ainda se ofereceu para carregar 4 dos 10 litros que eu levava. E eu, além de perplexo com minha ineficiência para burro de carga, estava atarantado em ver meu quase irmão subindo como um serelepe. O Marcelo, a essa altura do campeonato (uns 1700m) já tomava distancia.
"Cheguei ao meu limite", foi meu primeiro pensamento ao atingir o cume. Caminhava como um bêbado que tentava fingir estar sóbrio, quando contornei a ultima pedra, onde, desconhecendo o quanto faltava, decidi parar para retomar o fôlego. O Aranha, que mais tarde me confessou que também não lembrava o quanto faltava naquele ponto (insignificantes 5m!!!), tratou de não me deixar parar. De fato, se parasse, eu, que a essa altura não sentia nem braços nem pernas, teria muito mais dificuldades para chegar. O famoso "uhuuuuu!!!" que o Marcelo teve a honra de ser o primeiro a gritar quando chegou lá em cima, a 1.877m, me soou tão distante como se eu estivesse a quilômetros dele. A distancia que nos separava então era de 15m. A sensação térmica no cume era de 0 grau. Apesar dos membros lassos, tinha consciência do quanto era maravilhoso estar no ponto mais alto do sul do Brasil. Dormimos os três como nenéns, tamanha a fadiga. Até nos esquecemos de assinar o livro de cume.
E tempo para isso não nos faltaria no dia seguinte. Choveu a cântaros. Água à Bangu, mesmo... E, ironicamente, nossa maior preocupação era com o estoque de água (maldição eterna ao aquaflex!). Confinados os três ao interior da barraca, passamos o dia a filosofar e, numa brecha intermitente da chuva, a preencher o livro de cume com nossos devaneios (o Mal da Montanha...). "10 graus está marcando o termômetro", disse o Aranha. "Acho que esse teu termômetro está viciado, hein?", comentei. O chimarrão foi outra feliz idéia que nos ajudou a passar o tempo. Mais três montanhistas atingiram o cume neste dia (na certa pensando que estariam sozinhos naquele dilúvio. Mas a Arca de Noé sempre reserva surpresas. Esta nossa até aranha tinha...). Permaneceram apenas um dia e, possivelmente, desceram escorregando.
A constante neblina não nos permitiu sequer fotografar o amanhecer do dia 15. Segunda surpresa desagradável, posto que, qual não foi o nosso assombro ao constatarmos, no café da manha, a primeira delas: um infame ratinho da montanha havia dado cabo de alguns legumes e (mais previsível) do queijo ralado. "Bem que eu escutei um barulho de sacola se mexendo, de madrugada", relatou o Aranha, indignado. No entanto, mais importante agora, era que havia estiado. Decidimos aproveitar a brecha (e a temperatura de 10 graus, no termômetro do Aranha) para ir até o cume do Ibitirati. Passamos pelo União e, ao chegarmos ao topo com nossas maquinas fotográficas em punho, fomos surpreendidos pelo visual. Não vou nem fazer um relato muito extenso, pois a imagem fala por si. Maravilhoso!!!
Faltou filme para registrar a catarse de vida, cores e harmonia que compunham a fenomenal paisagem a que nos víamos integrados. "Valeu nossa semana", comentei com meus botões e, mais tarde, com Marcelo. Na volta, entre o Ibitirati e o União, nos detivemos por um instante a contemplar o vale que se precipitava a nosso lado, na forma de uma garganta colossal e profunda, a menos de um passo da estreita trilha onde estávamos. Aquela noite nos abraçou com uma incrível sensação, misto de satisfação e glória, que nos faria dormir intensamente, não fosse o inconveniente do rato. Mergulhamos em nossos sacos de dormir atentos a qualquer ruído de sacola e armados para cacetear o roedor no meio da noite, se ele ousasse aparecer na trincheira mais alta do Sul do Brasil. Eu, que estava com os pés envoltos por duas sacolas para amenizar o frio (de 10 graus), adormeci um pouco mais preocupado, atormentado pela idéia de, ao me mexer inconscientemente durante a madrugada, ser despertado por uma saraivada de porrete nos calcanhares.
Uma aurora alucinante nos saudou por volta das 7 horas do dia 16. Foram poucos os minutos que tivemos para registrá-la, menos nas lentes que em nossas memórias, pois a neblina nos envolveu novamente. Fizemos as últimas tomadas do que se podia ver do litoral e do Tupipiá, do qual tínhamos uma bela vista daquele ponto. Do outro lado do cume, se avistava o inicio da travessia para o Cerro Verde e as montanhas do outro lado da serra. Desceríamos, então, até o A2, onde levantaríamos acampamento para o pernoite. Chegamos lá às 4 da tarde, com a ameaça constante da nuvem negra que se instalara sobre nós, a qual batizamos "carinhosamente" de "Nega Tamara". Persistente, não nos deixou pôr o nariz para fora da barraca. Quando ameaçávamos fazê-lo, no que aparentava ser uma trégua, ela despejava suas "lagrimas", por certo de saudades do trio que, até então, fora mais persistente que ela...
A noite chegou estrelada, sem vestígios de chuva. O Aranha, ao sair da barraca, não conteve a infeliz exclamação de vislumbre: "Olhem, La City!!!", demonstrando dotes para as letras que estão como os meus para a física nuclear. Mas, de fato, Curitiba apontava como um amontoado gigantesco de pontilhadas luzes, dignas de um quadro de Georges Seurat. Olhei para o céu e constatei: "Estão aqui todas as estrelas do mundo". A tão esperada sobremesa do Marcelo veio, e sem decepções: uma surpresa gelada à base de mousse de limão, após um jantar no mínimo requintado para os padrões da montanha. Ceamos polenta com queijo e arroz com funghi secchi. Trouxemos comida "a migué". "Meu calvário na subida foi vão", pensei, desolado. Mesmo sem chuva, mas com vento, adormecemos a 10 graus, escala Aranha-Celsius.
Estava brusco no alvorecer do dia 17, último de nossa excursão. Durante a descida, cruzamos com um grupo que, naturalmente, subia. E nos colocamos no lugar daqueles que cruzaram conosco há 4 dias, ao pensarmos "Malucos, vão se molhar".
Nos separamos ao chegar em Curitiba, gratificados pela experiência pouco ortodoxa de 5 dias encharcados no mato. Na rodoviária, disse ao Aranha: "Esse termômetro vai voar longe se estiver marcando 10 graus". Mas fui desarticulado pelo termômetro em frente à rodoviária: fazia 10 graus em Curitiba. E já não chovia...
Agradeço ao Marcelo pela oportunidade que me cedeu de relatar a nossa façanha. Foi a prova de que, nem mesmo com chuva, o montanhista se abate, e tampouco deixa de curtir e contemplar o que a natureza lhe dispõe de melhor, em seu estado mais virgem. Montanhistas, uni-vos! São as Águas de Julho fechando o melhor da estação!!!