"O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos." (Marguerite Yourcenar)

«Adevăratul loc de naştere este acela unde pentru prima dată ai aruncat asupra ta însuţi o privire pătrunzătoare» (Marguerite Yourcenar)

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18 de dez. de 2013

O ANIMAL: Uma consciência silenciosa



por Jean-Guy Riant
(traduzido por Raul Passos a partir da revista "Rose-Croix" n°248, editada pela Grande Loja de Jurisdição de Língua Francesa da Ordem Rosacruz - AMORC)

  
“Os problemas impostos pelos preconceitos raciais refletem em escala humana um problema muito maior e cuja solução é ainda mais urgente: o das relações entre o homem e as demais espécies viventes... O respeito que desejamos obter do homem para com seu semelhante é apenas um caso particular do respeito que ele deveria manifestar para com todas as formas de vida...”. (Claude Lévi-Strauss)

            A dificuldade em saber se o animal possui de fato uma consciência é uma questão tão antiga quanto a própria humanidade. O homem jamais gastou tanta energia e jamais demonstrou tanta vontade quanto para se soltar de sua hipotética condição animal e, paradoxalmente, jamais conseguiu se separar daquele que foi o companheiro de toda a civilização humana. Esse elo ancestral que fascina pensadores de todos os tipos, sejam eles filósofos, cientistas ou até mesmo teólogos, legou uma literatura abundante, por vezes milenar, sobre o assunto da consciência animal, ponto principal que nos preocupa aqui. O animal sofre? Ele pensa? Pode refletir? Pode sentir emoções? Está consciente da morte – ou de sua morte?

            Entre os povos primitivos – no sentido de “primeiros”, e não de “subdesenvolvidos” – o animal possui, se não uma alma, ao menos uma mente. É algo inconcebível para esses povos que o animal não seja um ser pensante. Estes seres misteriosos de pêlos, penas ou escamas dão prova de tal inteligência e tanto fascinam por suas aptidões que perturbam o homem em sua natureza mais interior e mais sagrada num magnífico elo místico por natureza.

            Entre os gregos antigos, essa questão da consciência fascinava e animava os debates filosóficos, causando até mesmo repercussões sociais. Logo, era necessário definir o animal para saber quem era o homem, um não podendo existir senão se comparado com o outro, o que levou certos autores a escrever que “sem os animais, o mundo não seria humano”. Essa dicotomia profunda entre humanidade e animalidade tem sua fonte naquela época. Procura-se diferenciar de maneira absoluta o homem da besta, a civilização da barbárie e a “humanidade” daquilo a que chamaremos de “animalidade”.

            As regiões monoteístas acentuarão por sua vez essa tendência sacralizando o homem sem levar em conta por vezes a Criação. Nenhum versículo, a não ser o do Gênese bíblico (Gn 1, 28), proporcionou tantas desculpas para os comportamentos mais inumanos para com os animais. Lá está dito de fato que “Deus os abençoou [Adão e Eva] e lhes disse: sede fecundos e prolíficos, cobri a terra e a dominai; subjugai os peixes no mar, os pássaros no céu e todos os animais que se movem sobre a terra”. Porém, muitas outras passagens insistem na sabedoria animal. Nessa concepção de sabedoria, a inteligência é absoluta: o animal nasce perfeito? Sim, de acordo com os jesuítas, que inventaram a expressão “de instinto”, para não dizer que o animal era inteligente, ou – suprema blasfêmia – consciente. E sim também de acordo com René Descartes, rosacruz que, querendo devolver ao homem seu justo lugar numa Europa inquietante e inquisitória, tentou mais uma vez efetuar a comparação, desta vez de ordem metafísica: o homem é o pensamento, originando a palavra articulada.

            Descartes não compreendia bem o furor contra sua concepção dos “animais-máquinas”, que ele regularmente corrigiu ao longo de suas “objeções”, percebendo a imprecisão que envolvia sua teoria. Em outras palavras, para ele o animal tinha uma inteligência corporal e não-reflexiva – isto sob influência da poderosa igreja romana, que havia desposado a concepção de Aristóteles no nível de uma alma tripartida (nutritiva, sensitiva, reflexiva). Apenas a nutritiva e a sensitiva animariam os animais, perfeitos autômatos de Deus. Numa carta datada de 5 de fevereiro de 1649, ele chegou a escrever o seguinte: “Todavia, ainda que, como uma coisa demonstrada que não saberíamos como provar, haja pensamentos nas bestas, não creio que se possa demonstrar o contrário, pois o espírito humano não pode penetrar o coração delas”.

            Os partidários acirrados de Descartes, como Malebranche por exemplo, castraram as mentalidades ocidentais quanto aos animais ainda mais do que o fez a própria filosofia, pois seus defensores irão ainda mais longe. No furor dogmático do sagrado que reinava na época, acabar-se-á por afirmar que apenas a alma reflexiva existe. Consequentemente, os organismos de toda a Natureza são rebaixados ao plano de autômatos, certamente sutis, mas ainda assim autônomos, desprovidos de qualquer forma de alma – em outras palavras, de pensamento ou de mente. Esta concepção redutora, amplamente difundida pela Igreja por razões teológicas (pois resvalou-se no “Homem-máquina”), justificará de alguma forma as piores crueldades infligidas ao mundo animal.

            Charles Darwin será o primeiro a de fato lançar a pedra na lagoa ao publicar, no século XIX, diversas obras nas quais as observações comportamentais que ele fará quanto aos animais causarão uma reviravolta nas relações que o homem podia ter com o animal até então. O período industrial rebaixa ainda mais o animal à categoria de objeto para justificar sua exploração e a vivisseção. Veremos nascer as primeiras sociedades de defesa dos animais na Inglaterra. Infelizmente, o dogma lançado por nossa modernidade, não-passível de discussão e ainda tenaz em nossos dias, permanece: apenas o homem possui uma alma no sentido espiritual ou psicológico do termo, apenas o homem pensa, apenas o homem é capaz de reflexão, de altruísmo, de moral, de amor, de sentido de sagrado... Essa breve recapitulação histórica era necessária para que compreendêssemos um pouco que fosse da relação tumultuada que o homem sempre manteve com o reino animal.

            O assunto da consciência animal deve ser abordado com extrema prudência, inicialmente porque é difícil dar uma definição de consciência por si mesma, e também porque a consciência nos organismos vivos tem essa particularidade de se encaixar à moda das matrioshkas russas. Para termos uma imagem concreta disso, os cientistas reconhecem no homem a existência de um cérebro reptiliano e de um cérebro mamífero. Um será mais ligado aos instintos e o outro às emoções.

            Nesse contexto, o termo atualmente muito empregado de “animalidade”, pressupostamente destinado a ser a contraparte do termo “humanidade”, deve ser utilizado com circunspecção. De fato, isso pode redundar em considerar que a animalidade reúne em seus extremos todas as formas de vida e de consciência animal e as põe em pé de igualdade. Nesse caso, coloca-se no mesmo patamar, na escala da consciência, uma ostra e um chimpanzé... É necessário prudência, pois generalizações não podem ser feitas. Quanto mais a consciência se refina em suas manifestações, mais difícil será se esquivar das generalizações, pois se haverá de convergir insensível e invariavelmente para o conceito de “Indivíduo”.

            Assim sendo, somos mais sensíveis – é fato – aos animais biologicamente mais próximos a nós. Talvez seja também por essa razão que, quando falamos de animais, o homem é naturalmente levado, por fenômeno de empatia, a se representar como um mamífero, assim como um cão, um gato, um cavalo, um elefante ou um leão, e muito mais raramente como um réptil ou um peixe. Desse modo, e a fim de estabelecer balizadores para guiar esse estudo, referiremo-nos regularmente ao “animal” no sentido geral do termo. Contudo, será preciso termos em mente a extrema multiplicidade de formas que isso pode assumir, pois veremos que certos animais, por mais simples ou pequenos que sejam, encerram um tanto de surpresas para uma pessoa de espírito aberto.

            A primeira questão que poderia ser feita é sobre o sofrimento animal e que forma este sofrimento pode ter. Durante muitíssimo tempo, era costumeiro pensar que o sofrimento era submetido ao pensamento. O Ocidente, como vimos, tendo recusado o pensamento ao animal, recusou-lhe também ao mesmo tempo a sua capacidade de sofrimento. Citávamos Malebranche, e é ele quem manifesta a concepção mais redutora e a mais desumana. A história relata que um homem se indignou ao ver Malebranche bater numa cadela grávida e foi interpelá-lo. Malebranche lhe respondeu que os gritos emitidos pelo animal eram apenas um mecanismo dos órgãos e do ar e que era absolutamente pueril considerar o sofrimento animal como um sofrimento real. Como agora sabemos, o sofrimento é conduzido pelo sistema nervoso e, ainda que o pensamento não esteja totalmente excluído do processo, ele não desempenha o papel absoluto que se acreditava. Assim, é preciso que levemos em consideração que todo animal dotado de sistema nervoso é capaz de sofrer. É impossível negar essa evidência científica. É preciso no entanto levar em conta igualmente o grau de sofrimento.

            Alguns insetos, como por exemplo o lucano (espécie de escaravelho), munido de impressionantes defesas, quando em combate com outros machos por vezes têm a cabeça decapitada: os dois segmentos do animal – a cabeça separada do tronco – são ainda capazes de viver independentemente um do outro durante mais de uma semana. Podemos também elencar certos vermes que, cortados em dois, originarão dois indivíduos; ou ainda a raposa que, pega numa armadilha, não hesitará em roer sua pata de modo a seccioná-la e se livrar da emboscada... Estas situações, incríveis do ponto de vista humano, não excluem o sofrimento, mesmo que esses animais sobrevivam às mutilações.

            Mas qual é fundamentalmente o papel do sofrimento? Ainda que isso pareça paradoxal, ele protege o corpo orgânico, suporte da vida. É um ferrão que indica o umbral que não deve ser cruzado para a preservação do corpo físico. E com que objetivo? Na filosofia rosacruz, a vida em geral e as diferentes formas de existência em particular acumulam experiências para perfazer a expressão de uma consciência cada vez mais ampla. Para tanto, é preciso que admitamos uma forma de memória, e essa memória se produz em ligação com o presente através do pensamento. Existem memórias rudimentares, outras mais elaboradas, e talvez mesmo uma forma de memória ou de inteligência mais sutil que poderíamos evocar, no que se refere ao instinto.

            O pensamento no animal não é mensurável em estrito senso da mesma forma como o é no humano. Alguns cientistas medem o pensamento em microvolts... Isso porém não revela informações sobre seu conteúdo. O mesmo ocorre com o animal. Tentar compreender o animal unicamente segundo os critérios do pensamento humano é um verdadeiro caminho para aquilo que alguns tanto condenam: a antropomorfização, ou seja, a projeção dos afetos humanos sobre os animais. Wittgenstein escreveu a esse respeito: “Se um leão falasse, não poderíamos compreendê-lo”. Os gregos já refletiam sobre a eventualidade de o animal formular uma representação do mundo que lhe seja própria. Para essa representação do mundo, virtual ou abstrata, salientamos, é preciso uma determinada forma – ainda que elementar – de reflexão.

            Ora, essa faculdade que pensávamos até aqui ser propriedade exclusiva do homem e de alguns mamíferos superiores está espalhada bastante amplamente pelo mundo animal. Um dos exemplos mais chocantes é o de um animal que acompanha o homem há milênios – e não é o cachorro, o gato ou o cavalo, que poderíamos todos evocar longamente –, mas um que nos acompanha de forma muito mais modesta: a abelha. Os trabalhos de Frisch, comentados por Sir John Eccles, são a esse respeito interessantes sob todos os ângulos. Ele não apenas pôs em evidência a existência de uma linguagem simbólica entre as abelhas, executada com a ajuda de uma dança que informa as outras abelhas quanto à presença de uma fonte de alimento, à distância e à direção em que esta se encontra, como também ressaltou outro fato menos conhecido e que servirá aqui ao nosso propósito: o enxameamento.

            Quando o enxame é formado e as abelhas buscam um local para abrigar a colônia, várias delas partem para explorar as cavidades, grotas ou outros endereços suscetíveis de lhes oferecer um abrigo confortável, próximo às fontes de alimento, em que haja incidência de sol, umidade e que esteja a salvo dos predadores. Quando as abelhas regressam, elas executam a famosa dança destinada a informar suas congêneres. Fato extraordinário é que é preciso uma unanimidade para que o enxame se desloque e, para tanto, é necessário que as abelhas façam uma escolha. Para complicar a situação, acontece de algumas delas não estarem de acordo, cada qual dançando para o endereço que encontrou. Nesse caso, cada abelha se desloca até o outro local para inspecioná-lo e verificar se ele é mais acolhedor do que o seu. Algumas vezes ela insiste e outras vezes muda de ideia. A abelha dá prova de representação, de comunicação simbólica, de comparação, de reflexão e, por fim, de escolha. Lembremos que a abelha possui apenas alguns milhares de neurônios, comparados aos bilhões de um cérebro humano...

            Essa consciência nascente do mundo animal é fácil de se identificar entre os animais sociais, e ainda mais entre os mamíferos. A vida em sociedade exige que cada qual encontre seu lugar e isso só pode se fazer evidentemente numa relação com um novo conceito. Esse tipo de organização é uma mão estendida à consciência para uma nova progressão no animal, pois ela incita a considerar o outro e a cooperar com ele para a coesão e a sobrevida da microssociedade estabelecida. Dessa necessidade nascerá a empatia – a capacidade de se colocar no lugar do outro e imaginar o que ele sente. Este é o caso, agora reconhecido, dos grandes símios, dos elefantes, dos golfinhos e muito provavelmente das baleias. Essa empatia oferece numerosas vantagens à consciência animal, originando muitos exemplos de altruísmo, o que oferece aos filósofos debates suficientes sobre a moral e a ética entre os animais. Assim, as leoas tomam conta das mais idosas entre elas, caçando em seu lugar e chegando até mesmo a pré-mastigar a comida para aquelas cuja dentição já esteja muito desgastada. Encontramos esse comportamento entre os cavalos selvagens, entre os elefantes que tomam conta de seus semelhantes mais fracos ou dos que foram mutilados, e ainda em muitos outros casos...

            Esse tipo de comportamento não oferece portanto nenhuma explicação puramente evolucionista satisfatória. Na filosofia rosacruz, o altruísmo é um atributo potencial de certo grau de consciência, que aqui os animais possuem. A empatia porém oferece também, em estado embrionário, a consciência de si e de se fazer escolhas. Ora, revela-se que, como dizíamos, esse altruísmo é potencial e só se desenvolve ao ser solicitado. A capacidade de imaginar aquilo que o outro pode sentir também possui um lado contrário...

            Para ilustrar isso, citaremos os chimpanzés, que são extremamente hierarquizados. A luta pelo poder preocupa o conjunto da comunidade, originando coalizões que se estendem por vezes durante vários anos. O chimpanzé é agitado e por vezes muito agressivo, sendo capaz de chegar a cometer uma morte premeditada. Assim, Jane Goodall, primatologista célebre mundialmente, fez nos anos 1980 a seguinte observação, que ela hesitou em tornar pública, tamanha a perturbação que ela lhe provocou:

            Chimpanzés patrulhavam e velavam ciosamente pelo território de sua colônia. Um dia, um casal de chimpanzés estranhos à comunidade, tendo penetrado na zona proibida, foi violentamente agredido. A fêmea conseguiu escapar, refugiando-se no alto de uma árvore. O macho foi morto sem cerimônias. Esta foi a primeira vez em que o homem constatou no meio animal uma “deformidade” das especificidades “humanas”: o assassinato. E para perfazer a situação, atraído pelo ruído do tumulto, o macho dominante, vendo a fêmea, manifestou-se ruidosamente. Esta, descendo da árvore, fez o gesto de amizade e de submissão e tentou um abraço de reconciliação. O macho dominante se afastou violentamente dela e, tomando uma folha de árvore, raspou precisamente o local em que havia sido tocado pela fêmea desconhecida... Uma primeira forma de hostilidade? A fêmea porém, após diversas tentativas, foi finalmente admitida no clã e não foi morta. Quando a consciência se afina, como no caso dos macacos, a escolha se impõe a nós.

            Terminaremos esse estudo com a consciência da morte entre os animais e o possível nascimento do sagrado entre eles. Por muito tempo também, e porque o homem honra seus mortos por meio de rituais fúnebres, pensou-se que o homem era capaz de perceber essa mudança de estado que é a morte. Mais uma vez a observação atenta dos animais revelou o contrário. Quais são as razões que levam uma gazela a fugir de um leão? Seria simplesmente instintivo ou porque ela seria capaz de pressentir sua morte iminente? De fato, é difícil responder essa pergunta. Foi observado que, muitas vezes, gazelas se amontoavam, arriscando suas próprias vidas, parecendo fascinadas em contemplar um leão devorando uma de sua espécie.

            Todavia, a percepção da morte como mudança de estado existe entre muitos animais, e especificamos mais uma vez que isso não ocorre unicamente entre os mais evoluídos. As formigas, por exemplo, possuem no formigueiro uma câmara especial na qual depositam os cadáveres de suas congêneres. Não há cultos observáveis, mas qual seria portanto o interesse evolutivo de se conservar os cadáveres? Por que não se livrar deles no exterior do formigueiro? Os elefantes acompanham seus mortos e conhecem um ritual fúnebre particularmente emocionante. Os macacos também fazem rituais e cobrem o corpo com galhos. As baleias ajudam até o último suspiro as suas congêneres no fim da vida e as mantêm na superfície. Destacamos assim a grande emoção sentida pelos animais sabendo da morte de seu mestre, indo até a tumba e por vezes mesmo deixando-se morrer também.

            Tratamos até esse momento da morte do outro. Mas poderia o animal ser consciente de sua própria morte? Para responder essa pergunta seria necessário que penetrássemos a mente de um animal. Isso é materialmente impossível, contudo através da linguagem isso poderia ser concebível. No momento, os únicos animais capazes de se comunicar com o homem por meio de uma linguagem comum, a linguagem americana de sinais, são os grandes símios. O caso que nos interessa aqui é o de Koko, um gorila apaixonado por gatos ao qual foi ensinada a linguagem dos sinais. Eis o que Koko respondeu quando lhe fizeram perguntas sobre a morte:

Pergunta: “Para onde vão os gorilas quando morrem?”
Koko: – “Confortável – buraco – adeus”.
P.: “Quando morrem os gorilas?”
Koko: – “Preocupações – velhos”.
P.: “Como os gorilas se sentem quando morrem? Felizes, tristes, amedrontados?”
Koko: – “Dormir”.

            Este não é o único caso espontâneo conhecido que possa deixar presumir a consciência da morte num animal: é também conhecido agora o do gorila-de-dorso-prateado Michael, órfão que foi criado com Koko. Perguntado sobre sua mãe, ele evocou a lembrança que tinha do seu massacre por caçadores na floresta africana quando era bebê, explicando: “desordem-[para]-carne-gorila, fazer careta-batalha, gritar-de-dor, tumulto-ruidoso, terror-mágoa-enfrentar-fazendo careta, cortar-o-pescoço, boca-mãe-[ficar]-aberta” (tradução aproximada da ASL – Linguagem Americana de Sinais). Relata-se por outro lado que quando os caçadores africanos penetram uma floresta e se deparam com uma mãe chimpanzé com seu filhote, caso o homem esteja armado, ela coloca espontaneamente o pequeno à sua frente: estaria ela consciente do perigo de sua morte e, caso estivesse, esperaria a compaixão do caçador? Se for este efetivamente o caso, então as emoções que ela evoca são as mesmas no chimpanzé e no homem.

            Essa proximidade emocional partilhada com os animais nos conduz irremediavelmente à questão do sagrado. É bastante extraordinário ver que certos animais, como os ursos por exemplo, ou os grandes símios, permanecem por horas diante de um pôr-do-sol ou de uma belíssima paisagem, igualmente hipnotizante para o homem. Esses animais possuiriam uma noção de estética? Essa contemplação produziria na consciência animal uma intensa emoção de beleza? Esse breve momento de harmonia exterior convocaria a harmonia da consciência interior a se manifestar?
            Muitos pontos diferentes foram abordados nesse texto, porém há outros que mereceriam ser ditos ou salientados. Muitos de nós certamente vivenciamos momentos intensos com os animais e deles temos compreensões distintas. Cada qual é livre para formar suas opiniões a esse respeito.

“Olha teu cão nos olhos e não poderás afirmar que ele não tem alma”.

(Victor Hugo)

2 de mai. de 2013

DEBUSSY E O ESOTERISMO FERVILHANTE DA "FIN DE SIÈCLE"


         
               Na virada do século XIX para o XX, eclodia em Paris um notável movimento artístico, o Simbolismo, que vai beber no esoterismo e na espiritualidade no afã de estabelecer uma ligação concreta entre as manifestações artísticas e as verdades essenciais veladas pelo Ocultismo. As livrarias parisienses tornam-se verdadeiros bastiões dessa nova estética e nelas se reúnem artistas que comungam desses mesmos ideais. Uma delas, a L’Art Indépendant, de Edmond Bailly, tem entre seus ilustres frequentadores os pintores Edgar Degas, Henri Toulouse-Lautrec e Odilon Redon, os místicos Augustin Chaboseau, Papus, Stanislas de Guaita e Joséphin Péladan, o músico Érik Satie e os poetas Stéphane Mallarmé, Pierre Louÿs e Victor-Émile Michelet. É precisamente Michelet quem nos diz, a respeito do compositor Claude Debussy, que “podendo se expressar livremente na livraria, Debussy deixou-se impregnar profundamente pela filosofia hermética (inclusive por antigas teorias egípcias de magia e alquimia)”.

            Debussy, o grande nome da música naquela virada de século, não ficou portanto refratário a esse movimento. Tendo um interesse muito grande pelo ocultismo e por cabala (conforme atesta sua correspondência com Maurice Bouchor), estabeleceu laços de amizade com muitas dessas personalidades, notadamente com a célebre ocultista Emma Calvé. É ela possivelmente quem leva o compositor ao cabaré Chat Noir (Gato Negro) – que era frequentado por, entre outros, Alfons Mucha e Camille Flamarion –, onde ele virá a conhecer Érik Satie. O primeiro contato de Debussy com o Rosacrucianismo parece datar da época de sua ida a Roma, onde permaneceu por pouco mais de um ano após ter ganho o prestigioso Prix de Rome. De lá, diz-nos o biógrafo Edward Lockspeiser, ele pede a Emile Baron que lhe envie revistas simbolistas e a Rose+Croix, editada pelo cabalista Albert Jounet.

            É precisamente no princípio dos anos 1890 que, junto com Satie, Debussy se iniciará no movimento rosacruz estabelecido por Joséphin Péladan. Também data dessa época a sua colaboração musical com o ocultista e dramaturgo Jules Bois e com Villiers de l’Isle-Adam, outro frequentador da L’Art Indépendant e autor da peça Axel, de contornos rosacruzes, sobre a qual Debussy esboçará uma ópera. Em Axel, peça que Michelet deriva de Dogma e Magia Ritual, de Éliphas Lévi, abundam as referências ao pantáculo e à proporção áurea, que encontraremos em muitas composições de Debussy, notadamente na virtuosística L’Isle Joyeuse e no célebre Clair de Lune. Roy Howat, autor de um magnífico estudo sobre Debussy e a proporção áurea, relata que uma das novelas de Péladan, Le Panthée, cujo personagem principal é um compositor que trabalha constantemente em sua “Sinfonia de Ouro”, inspira-se na relação do autor com Debussy e Satie.

            Mesmo após romper com Péladan, é provável que Debussy tenha continuado discretamente seu envolvimento com o mundo do misticismo. À parte alguns relatos altamente controversos que dizem que ele teria sido Grande Mestre de uma [pseudo]-ordem chamada Priorado de Sião, a soprano inglesa Maggie Teyte, amiga do compositor, relata que em 1907, quando ela o conheceu, “ele ainda estava envolvido em atividades esotéricas, incluindo Egiptologia esotérica”. Além disso, o compositor e ocultista inglês Cyril Scott afirma que Debussy teria inconscientemente reproduzido em sua obra, através da música javanesa e por influência dos “Altíssimos”, cantos templários dos atlantes, sobretudo no segundo de seus Noturnos para orquestra: Fêtes.

Se por um lado Debussy efetivamente não chegou a produzir nenhuma obra intencionalmente esotérica, é evidente que seu pensamento musical e alguns de seus ideais artísticos e humanos estavam embebidos de uma filosofia superior, que se não chegou a manifestar-se plenamente em sua vida pessoal, foi apenas por força de um caráter impulsivamente independente e por vicissitudes de sua existência material. Lembremos que ele chegou a defender a ideia da criação de uma “Sociedade de Esoterismo Musical”. Seus ideais, assim como sua criação artística, jamais se curvaram às necessidades materiais e nunca fizeram concessão ao gosto popular mediano ou àquilo que fosse simplesmente medíocre. 
– RAUL PASSOS

27 de mar. de 2013

FRANCIS POULENC, ÉDITH PIAF E O CHÂTEAU D’OMONVILLE


O Château d’Omonville, situado na região francesa da Normandia, é a sede da Grande Loja de Língua Francesa da AMORC e juntamente com as construções do Parque Rosacruz de San Jose, na Califórnia, é o edifício mais emblemático da Ordem Rosacruz. Além de seu valor afetivo para os rosacruzes, trata-se de uma construção importante também do ponto de vista histórico – falamos aqui de uma elegante edificação em pedra cujas bases foram lançadas em 1754 e que foi concluída na segunda metade do século XVIII.
Contudo, ainda existe outra curiosidade, esta de interesse musical, que chama nossa atenção para o Château: até fins da década de 50 (em 1969, após quase uma década de abandono, o Château passa a ser propriedade da AMORC), ele fora propriedade do rico notário parisiense André Manceaux e de sua esposa Jeanne, que vem a ser irmã mais velha do célebre compositor Francis Poulenc, cujos 50 anos de morte são relembrados agora em 2013 por todo o mundo da música.
André e Jeanne adquiriram o Château em 1927. No decorrer dos anos, eles empreenderam a longa e meticulosa restauração que devolveu à construção o seu esplendor. Assim, ocorre que o notável compositor passou muitas temporadas em Omonville durante aquele período (até mesmo algumas fotos de seus momentos de lazer no Château podem ser vistas em http://www.poulenc.fr/?Photos). Na quietude daquele local, Poulenc compôs algumas de suas obras-primas, entre as quais o ciclo de canções Le Travail du Peintre (O Trabalho do Pintor), dedicadas cada uma a um dos seus contemporâneos gênios da pintura (a saber: Pablo Picasso, Marc Chagall, Georges Braque, Juan Gris, Paul Klee, Joan Miró e Jacques Villon).
Poulenc passou à história como um compositor que trouxe à música francesa o frescor da espontaneidade: sua música, que arranca aquele sorriso de identificação e cumplicidade do ouvinte, é de escritura sofisticada, embora faça uso de uma linguagem simples, sendo profunda sem ser aborrecida e ao mesmo tempo leve sem ser superficial, para tomarmos de empréstimo as palavras do pianista francês Pascal Rogé.
O melodismo de Poulenc, que nos arrebata em obras como Les Chemins de l’Amour, nos leva a evocar Édith Piaf, ilustre cantora e rosacruz cujas qualidades interpretativas tanto acrescentaram à música francesa. Poulenc e Piaf eram amigos e para ela o ilustre compositor escreveu a última de suas Improvisations para piano, em 1959, que leva o subtítulo “Hommage à Édith Piaf” – Homenagem a Édith Piaf.
O quarto de música do Château d’Omonville, onde ficava o piano do compositor e onde ele materializou muito da música que lhe inspiravam as Hostes Cósmicas, hoje é o escritório do Imperator, que vem a ser o dirigente mundial da AMORC. Ele certamente continua a receber o influxo da Inspiração Divina para a boa condução da Ordem e a desfrutar das excelentes vibrações lá deixadas pela música de Francis Poulenc.
Raul Passos

19 de set. de 2011

ALEXANDER SCRIABIN, HARVEY SPENCER LEWIS E A MÚSICA DAS CORES


                                                                                     

                Muitos são os paralelos possíveis de serem traçados entre o misticismo e as artes e muitos autores consagrados – assim como místicos particularmente inspirados – debruçaram-se sobre o assunto, indo desde o campo da pesquisa acadêmica ao da fruição mais singela e espontânea. Curiosamente, independente muitas vezes de contexto histórico ou de parâmetros de pesquisa, as conclusões (quando existentes) acabam invariavelmente convergindo para o fato de que ambas as vias – misticismo e arte – suscitam emoções parecidas no ser e nele (re)organizam elementos internos que possibilitam um melhor entendimento do próprio eu e, consequentemente, descortinam novos horizontes na senda do auto-conhecimento.

            Não causa espanto, pois, que muitos artistas tenham se inclinado seriamente ao misticismo, e que, por sua vez, místicos e filósofos consagrados tenham manifestado seu interesse – e mesmo sua versatilidade – no âmbito das artes. Pitágoras, Schumann, Debussy, Satie, da Vinci, Péladan e uma pequena multidão de compositores do século XX mostraram uma preocupação considerável para com os elos entre as artes e a filosofia nas suas mais amplas abordagens, muitas vezes consagrando toda a sua produção a uma orientação espiritualista.

            Pouco lembrado neste rol – e com frequência negligenciado pelos intérpretes – é o compositor russo Alexander Scriabin. Figura ímpar na história da música, talvez tenha sido aquele que mais sincera e honestamente tenha esboçado uma arte com intenções legitimamente transcendentais. Autor de uma música de verve, inspirada, de complexidade considerável e alcance técnico ambicioso, Scriabin é um exemplo claro do casamento plasmado entre o summum bonum dos ideais artísticos e o mais irreprimível dos desejos de expansão de consciência.

            É bastante curioso o fato de Scriabin (1872-1915) ter sido contemporâneo quase exato de Harvey Spencer Lewis (1883-1939) e ter tido algumas ideias bastante semelhantes às do místico norte-americano. Foram respectivamente, com propriedade de palavra, um místico da música e um artista do misticismo.


Século de ruptura

Scriabin foi um dos mais inovadores e controvertidos compositores do modernismo nascente. A Grande Enciclopédia Soviética diz a respeito dele: "Nenhum compositor foi mais desprezado e idolatrado…". Tolstoi definiu a música de Scriabin como “uma sincera expressão de gênio". Bastante destacado e independente de certas tendências reformadoras e mesmo ignorando as inovações musicais promovidas por Arnold Schoenberg no começo do século XX, Scriabin desenvolveu – e aí mesmo reside parte substancial de seu misticismo pessoal – um sistema musical progressivamente atonal que anteviu outras formas de música serialista. Em termos menos técnicos, ele promoveu uma abertura da linguagem musical análoga àquela que Debussy silenciosamente operava em Paris na mesma época e à ruptura arquitetada por Schoenberg em Viena, porém por outra vereda. Em outras palavras, a música que o século XX começava a redesenhar punha em xeque muitos valores estéticos que vigoravam até então, chegando mesmo por vezes a aniquilar os princípios formais sobre os quais a música europeia se edificara ao longo de muitos séculos.

A música de Scriabin evolui gradualmente ao longo de sua vida, embora esta evolução seja muito rápida e particularmente breve se comparada à da maioria dos compositores. À parte suas peças juvenis, suas obras são notadamente originais, sendo que na maturidade e no seu último período composicional elas passam a ser construídas sobre harmonias e texturas incomuns. Pródigo em sintetizar contradições, é quase impossível ligá-lo a alguma tradição anterior. O compositor Aaron Copland elogiava o material temático de Scriabin como sendo "verdadeiramente individual e inspirado".

É de cabal importância lembrarmos que toda a música de que dispomos hoje, e nisso inclui-se em grande parte a música que “consumimos” em nossa vida cotidiana, é fruto direto e indireto desse processo que eclodiu naquele agitado começo de século.


Vida, arte e mysterium

Scriabin pode ser considerado o principal – e quiçá verdadeiramente o único – compositor simbolista russo. Via a si próprio como uma figura religiosa ou messiânica. Considerado por vezes como um iluminado, suas ideias eram suficientemente estranhas para desviar sua música de um grande número de ouvintes – até hoje! Filho de um diplomata expert em línguas orientais e de uma talentosa pianista, Scriabin era um menino tímido e insociável com seus colegas, embora apreciador da atenção adulta. Já no Conservatório, após ser desafiado pelo pianista Josef Lhévinne, lesionou sua mão direita enquanto praticava peças de extremo virtuosismo. Seu médico atestou que ele jamais se recuperaria, fato que o levou à composição de sua primeira obra-prima de largo fôlego, a Sonata para Piano n.1 em Fa Menor, a qual segundo ele próprio constituía "um grito contra Deus e contra o destino". Sua mão, contudo, recobraria a saúde mais tarde.

Em 1909, após estadias em Paris e Bruxelas, ele regressa permanentemente à Rússia, onde começa a trabalhar em projetos cada vez mais grandiosos, notadamente aqueles unindo música e cor. De fato, influenciado também pelas doutrinas da Teosofia, ele desenvolveu seu sistema de sinestesia na direção daquilo que teria sido uma pioneira performance multimídia: seu não-realizado magnum opus, “Mysterium”, deveria ter sido uma performance de uma semana incluindo música, dança, luzes e perfumes, o que de alguma maneira, em seu projeto, acarretaria a dissolução do mundo em êxtase. A execução desta obra duraria sete dias, aconteceria no sopé do Himalaia e causaria um armageddon. Vejamos o que o próprio Scriabin disse a respeito:

 "uma grandiosa síntese religiosa de todas as artes que seria o arauto do nascimento de um novo mundo. Sinos suspensos das nuvens convocariam os espectadores. As auroras seriam prelúdios e os crepúsculos ‘codas’. Chamas irromperiam em raios de luz e turbilhões de fogo. Perfumes transmutariam e impregnariam a atmosfera".

Scriabin deixou apenas esboços desta composição, embora uma parte introdutória dela, chamada L'Acte Préalable (Ato Preparatório) tenha sido posta em cena por Alexander Nemtin e também executada pelo célebre musicista russo Vladimir Ashkenazy, em Berlim. Mysterium era, psicologicamente, um mundo que Scriabin havia criado para sustentar sua própria evolução. Segundo o estudioso Faubion Bowers, por este rito musical, ele pretendia recuperar a história primordial dos poderes mágicos. O compositor, vitimado por uma septicemia causada por uma banal picada de inseto, morreria com apenas 43 anos.

Filosofia e misticismo

Os pensamentos de Scriabin eram bastante complexos e mesmo tingidos de um certo solipsismo. Scriabin visita, em 1900, a Exposição Universal de Paris (na qual Debussy tomaria contato com a música do Oriente, fato decisivo para a música do século XX), torna-se membro da Sociedade de Filosofia de Moscou e mergulha na leitura das antigas filosofias. Em 1902, cansado das intrigas e ciumeiras do Conservatório de Moscou, pede demissão. A partir de 1904, passa a manter um diário pessoal, onde registra suas reflexões musicais e filosóficas. Ele teria sido iniciado ao mundo do misticismo pelas mãos de um amigo seu da nobreza. Também se interessava pela teoria do super-homem de Nietzsche e posteriormente inclinou-se à Teosofia, fascinando-se pela obra de Helena Blavatsky. Ambos os pensamentos influenciaram profundamente sua mística pessoal e sua produção musical. O também teosofista e compositor Dane Rudhyard teria dito que Scriabin era “o único grande pioneiro da nova música de uma civilização ocidental renascida; o pai da música do futuro”.

Scriabin desenvolveu seu próprio misticismo abstrato e pessoal baseado no papel do artista em relação à percepção do fenômeno da vida. Suas ideias de certo modo assemelham-se aos conceitos platônicos e aristotélicos. As fontes principais de sua filosofia podem ser encontradas em seus numerosos diários não publicados, num dos quais ele escreveu sua famosa sentença “Eu sou Deus”. É difícil precisar o alcance desta afirmação, mas não estaria Scriabin plenamente convencido e sensível às capacidades latentes do homem – ou do super homem? Nestes cadernos, ao lado de breves apontamentos, podem-se encontrar complexos diagramas técnicos explicando sua metafísica. Suas noções filosóficas foram substancialmente traduzidas em música em obras como as Sonatas para Piano n.7 (Sonata da Luz ou “Missa Branca”) e n.9 (Sonata das Trevas ou “Missa Negra”).

A partir de 1907, a experiência da sinestesia (correspondência entre fenômenos sensoriais de naturezas diferentes) passa a ser um fator dominante na produção musical de Scriabin. Inspira-se nos escritos de Louis-Bertrand Castel (1688-1757), inventor de um instrumento de teclado que associava cores e sons, e cria um instrumento semelhante, o "clavier à lumières" [teclado de luzes], ou ainda Luce (palavra italiana para "luz"). Vale notar que o instrumento elaborado por Castel não é o pioneiro do gênero. Ao longo da história, muitos outros projetos de instrumentos similares foram elaborados, o que comprova o fascínio que a associação entre som e cor sempre exerceu nas mentes mais curiosas. Como veremos a seguir, o Luxatone, criado por Harvey Spencer Lewis, talvez seja o exemplar mais célebre desses inventos.

As cores da música e a música das cores

Embora alardeie-se que muitas das obras de Scriabin tenham sido compostas à luz da sinestesia, o fato de que Scriabin realmente assim percebia os estímulos sensoriais permanece não comprovado: ele se jactava de poder ouvir cores. Seu sistema de cores corresponde ao que em música se chama “círculo de quintas”: este conceito já está presente na obra de Isaac Newton intitulada Opticks.

Em sua autobiografia Recollections [Reminiscências], o compositor e pianista russo Sergei Rachmaninov evoca uma conversa que teve com o também compositor Nikolai Rimsky-Korsakov e com Scriabin sobre a associação que este último fazia entre cor e música. Rachmaninov surpreendeu-se ao descobrir que Rimsky-Korsakov concordava com Scriabin a respeito da associação entre tonalidades musicais e cores; Rachmaninov, ele próprio um cético, evocou que os dois compositores nem sempre estavam de acordo quanto às cores envolvidas. Ambos defendiam que a tonalidade de Re Maior correspondia à cor amarela, mas Scriabin associava Mi Bemol Maior ao vermelho-púrpura ao passo que Rimsky-Korsakov inclinava-se a favor do azul. Contudo, Rimsky-Korsakov protestou argumentando que uma passagem da ópera The Miserly Knight, do próprio Rachmaninov, ratificava o que eles afirmavam: a cena em que o Velho Barão abre as arcas do tesouro, revelando ouro e joias cintilando à luz de archotes, está escrita na tonalidade de Re Maior! Scriabin disse a Rachmaninov que "sua intuição inconscientemente seguiu as leis cuja existência você tentou negar".





 Duas de suas obras, o Poema do Êxtase (1908) e Prometeus: O Poema do Fogo (1910), são dignas de nossa atenção. Nelas é empregado o teclado de cores projetado por Scriabin. Este instrumento, tocado como se fosse um piano, projetava luzes coloridas numa tela disposta na sala de concertos. O teclado de cores original de Scriabin, com sua mesa giratória de lâmpadas coloridas, está exposto no apartamento que foi habitado pelo compositor e que hoje é um museu dedicado à sua memória, em Moscou.

Prometeus: O Poema do Fogo, de fato, através da combinação de sons e cores, parte em busca de uma liberdade espiritual e do êxtase. Assim, a música de Scriabin evolui de maneira sempre mais nítida na direção dos aspectos místicos da vida, da morte e da reencarnação. Quanto ao Poema do Êxtase, de fato Scriabin pretendia que a performance da obra provocasse um êxtase místico na audiência. Outros exemplos de obras suas tangidas pelo conceito de sinestesia são o Poema Divino (1905) e Vers la Flamme (1914), sobre a qual disse o pianista russo Vladimir Horowitz: “Scriabin tinha a excêntrica convicção de que um acúmulo constante de calor causaria finalmente a destruição do mundo”. O nome da peça efetivamente evoca a ígnea destruição da Terra: “na direção da chama”.


O Luxatone do Dr. Lewis

            Este complexo instrumento era formado por uma tela de vidro triangular, luzes nas cores primárias, um jogo de tubos de vácuo e componentes de rádio no interior do console. Uma vez detectada a frequência sonora, o circuito a media e acionava as luzes coloridas que se projetavam na tela, em combinações diferentes conforme a intensidade.
            Após a demonstração bem sucedida de seu invento, Harvey Spencer Lewis publicou um opúsculo a respeito, o qual foi enviado tanto aos membros da AMORC quanto aos jornais.


Místicos da arte, artistas do misticismo

            Efetivamente, se por um lado vemos que há algumas diferenças de interpretação dos fenômenos, é espantoso reconhecermos como ideais e inspirações filosóficos conduziram esses místicos à idealização de tais experimentos. Sem dúvida, movidos por uma certeza íntima inabalável, lograram perpetuar e amplificar por meio de suas obras – na música e no misticismo – a aspiração à suprema meta da existência: a evolução e a compreensão da realidade divina. Concluímos com um pensamento de Scriabin que sintetiza essa busca:

"Na respiração divina do amor, há o aspecto mais íntimo do universo"


BIBLIOGRAFIA

-. The Rosicrucian Salon presents the Mysterious Inventions of Dr. Lewis. In http://www.rosicrucians.org/salon/inventions/inventions.html , acessado em 13/07/2011.

BOWERS, Faubion. Scriabin, a biography. New York. Dover Publications, 1996.

GARCIA, Emanuel E. Scriabin’s Mysterium and the birth of genius. Mid-winter meeting of the American Psychoanalytic Association. New York, 2005.

KELKEL, Manfred. Alexandre Scriabine : un musicien à la recherche de l’absolu. Paris. Fayard, 1999.

MINDEROVIC, Zoran. Alexander Scriabin biography. In www.allmusic.com/artist/q7982 , acessado em 14/07/2011.

RACHMANINOV, Sergei. Recollections. New York. Macmillan, 1934.

SAMSON, Jim. Music in transition: a study of tonal expansion and atonality, 1900-1920. New York. W.W. Norton & Company, 1977.

TOMÁS, Lia. The mythical time in Scriabin. Anais do 5th Congress of the International Association for Semiotic Studies. Berkeley, 1994.

4 de out. de 2010

CLAUDE DEBUSSY e ERIK SATIE: Compositores Rosacruzes

 
     Num tempo em que muito se tem falado sobre os vínculos entre música e esoterismo e sobre a ligação entre renomados compositores e fraternidades iniciáticas, percebemos quantas vezes os embasamentos históricos são duvidosos e muitas vezes repousam sobre meras especulações. Todavia, sabe-se efetivamente do engajamento de ilustres nomes da música com a Maçonaria. Este é o caso de Mozart (que escreveu inúmeras peças ou dedicadas à ritualística dos maçons ou com temática maçônica), Beethoven, Rossini, Liszt, Puccini, Sibelius (que, a exemplo de Mozart, escreveu música de inspiração maçônica), Piazzolla e Gershwin (esses dois últimos iniciados em lojas de Nova Iorque, na primeira metade do século XX). Perguntamo-nos então em que ponto o pensamento e o misticismo rosacruzes influenciaram igualmente as personalidades que edificaram a história da nossa música.

     Muito se sabe sobre o vínculo esotérico de Francis Bacon, Comenius, Paracelso, Nicholas Flamel, Benjamin Franklin, Jacob Boehme e Thomas Jefferson, por exemplo, para ficarmos mormente no campo gravitacional de filósofos e estadistas. Por outro lado, vemos pouquíssimas linhas dedicadas a ilustres músicos rosacruzes e, menos ainda, sobre as páginas artísticas por eles produzidas à luz da inspiração mística. Por certo, os dois principais nomes ligados ao rosacrucianismo são os de Claude Debussy (1862-1918) e Erik Satie (1866-1925).

     Do ponto de vista musical, Satie é tido historicamente como o grande agitador que inspirou mais de uma geração de compositores franceses a renovar a manifestação musical de seu país, naquele momento envenenada pelo excesso de academicismo e dominada pela influência da ópera. Portador de uma grande carga de gênio, Satie, através de sua atitude libertária, banhada em um perspicaz humor literário, abriu caminhos para que outros compositores, mais preparados tecnicamente, produzissem as obras máximas da música francesa.

     O melhor da produção de Satie encontra-se nas suas miniaturas para piano, onde identificamos sua genialidade mais completamente manifestada. Era um grande improvisador e suas criações nasciam normalmente de inspirações súbitas movidas por estímulos não-musicais. Muitas de suas composições levam títulos humorísticos, mas é curioso notar, entre suas páginas mais apreciadas, a série de 6 peças para piano que levam o sugestivo nome de Gnosiennes (que poderíamos livremente traduzir por ‘Gnósticas’) que automaticamente nos leva a intuir a preocupação filosófica de Satie, fator igualmente preponderante em sua criação.

     Debussy, por sua vez, é uma figura mais celebrada e é artisticamente mais representativo. Cabe aqui mencionarmos alguns aspectos de sua personalidade e de sua obra, que até certo ponto são indissociáveis. É curioso notar as referências feitas sobre o homem Debussy através do olhar de alguns de seus ilustres contemporâneos. O compositor francês é retratado como alguém bastante decepcionado com a raça humana, e sua tolerância com as “humanidades” foi extinguindo-se conforme foi envelhecendo. Tanto em sua música como em sua vida, manifestou uma perene aversão ao supérfluo e a toda ornamentação inútil. Era a exatidão personificada, conciso no expressar-se e cuidadoso com frases, palavras e gestos, fossem eles musicais ou não. Segundo o crítico de arte francês Gabriel Mourey


Debussy era um ser concentrado que vivia uma intensa vida interior.”

     Nesse sentido, o também compositor Raymond Bonheur recorda que em Debussy


“não havia traços da vulgaridade comum aos artistas, nem mesmo aquela ‘amigável camaradagem’ que freqüentemente oculta intenções clandestinas (...). Ao mesmo tempo, ele demonstrava uma grande indiferença à opinião das massas e, sobretudo, um refinado orgulho que não era mais do que a certeza de estar vivendo de alguma maneira em um plano superior”.


     Por outro lado, o compositor Alfredo Casella deixou um interessante testemunho acerca do Debussy já adulto e pai:


“Até o fim, Debussy permaneceu aquilo que os franceses chamam de ‘grand enfant’ [criança grande]. Aquela mesma inocência maravilhosa e limpidez de sentimento, que são a característica fundamental de sua arte, transpareciam em todos os seus atos e palavras. Com cinqüenta anos, ele se divertia mias do que sua pequena filha Chouchou [Claude-Emma] com os brinquedos que lhe trazia sua mãe.”


     Ainda nesse sentido, observamos esse lado perspicaz, misterioso e algo irônico do compositor quando, a respeito da composição do ballet “La Boîte à Joujoux” (A Caixa de Brinquedos), disse ter se inspirado “extraindo confidências de algumas das velhas bonecas da Chouchou”. Essa pureza infantil foi novamente trazida à tona, em sua personalidade, por sua filha. Ao lado de suas paixões por literatura e filosofia, por exemplo, figuravam o gosto pelo circo, pelo teatro de marionetes e pelos livros infantis de figuras.

     O compositor e pianista Gabriel Pierné relata, em seu livro de memórias, que Debussy, já garoto, tinha particular predileção por objetos delicados, raros, preciosos e diminutos. Possivelmente revela-se já nessa época o perfeccionista que esculpiria com esmero cada detalhe sonoro de suas composições mais tardias. Sua irmã Adèle recorda uma criança que “passava dias inteiros sentado e sonhando com algo que ninguém poderia ter idéia”. Mostrava-se meticuloso na escolha das cores de tudo o que usava e, ademais, era sensível no mais alto grau: a menor coisa poderia animá-lo ou então enfurecê-lo, segundo o testemunho de Marguerite Vasnier, a quem Debussy dedicou algumas de suas canções. Seu temperamento independente e resoluto igualmente já se manifestava desde a juventude. O músico Paul Vidal, também seu contemporâneo, relata que “nada exerce qualquer domínio sobre ele”. Também já cedo, durante sua vida acadêmica no Conservatório de Paris, manifestou sua atração pela poesia simbolista de Baudelaire, Mallarmé e Verlaine. Esses poetas seriam referência constante em sua produção musical, tendo ele musicado algumas das mais sublimes páginas das obras deles. Para ele e para os poetas simbolistas, a natureza esotérica da arte era uma crença central, quase dogmática. Baudelaire, particularmente, foi um referencial constante na produção de Debussy. Recordemos que Les Fleurs du Mal (As Flores do Mal), obra-prima de Baudelaire, é caracterizada pela exploração deliberada da dualidade da existência, e que vários poemas dessa obra e de outras criações de Baudelaire eram recorrentes na criação debussyana. O compositor ainda assistiria a uma das soirées literárias de Mallarmé, dirigidas para uma platéia escrupulosamente refinada para apreciação de suas produções inclinadas ao misticismo. Não causa surpresa o fato de uma das grandes produções de Debussy para orquestra, Prélude à l’Après-Midi d’un Faune ter sido inspirado no poema homônimo de Mallarmé.
    
     Em 1895, Debussy terminaria sua ópera Pelléas et Mélisande, que merece de nossa parte um olhar mais cuidadoso. De todas as suas composições, essa é a que sintetiza melhor sua estética e seu ideal. Aqui, Debussy subjuga o ímpeto da emoção humana à sobriedade da sua refinada e sutil expressão musical. É um retrato do sentimento humano sem a ação dramática esperada de uma ópera. Sobre essa obra, declarou a cantora inglesa Mary Garden, que interpretou Mélisande por ocasião da prémière da obra:


“(...) tive as mais extraordinárias emoções que já experimentei na vida. Ouvindo aquela música, eu sentia tornar-me alguém mais. Alguém dentro de mim cuja linguagem e alma eram aparentadas às minhas.”


     Sobre o compositor, ela acrescenta ainda:


“Debussy vivia num mundo tão seu onde ninguém, mesmo sua esposa Lilly, com todo seu carinho e adoração, poderia alcançá-lo. (...) Sentava-se ao piano, por uma hora ou mais, e improvisava. Essas horas permanecem como jóias em minha mente. Jamais ouvi uma música assim em minha vida (...). Quão bela e assombrosa ela era, e ninguém além de Lilly e eu jamais a ouviria. Debussy nunca pôs essas improvisações no papel: elas voltaram para o estranho lugar de onde vieram, para nunca retornar. Aquela música preciosa, perdida para sempre, era distinta de qualquer coisa de Debussy. Havia nela uma qualidade muito sua, remota, de outro mundo, sempre dizendo algo à margem das palavras.”


     Tal era o homem, tal era o compositor. Seu credo artístico, como ele mesmo professava, era “o prazer é a lei”.

     Debussy e Satie conheceram-se em 1890 num popular cabaré parisiense chamado “Chat Noir” (Gato Negro). No ano seguinte, iniciaram-se numa fraternidade rosacruz intitulada “Ordem Cabalística da Rosacruz”, recém reestruturada em Paris. Entre aqueles que a reorganizaram, estavam alguns nomes bastante conhecidos, sobretudo pelos martinistas: de seu Conselho Supremo faziam parte Stanislas de Guaita, Sâr Joséphin Péladan, o célebre místico Gérard Encausse, conhecido como Papus, e Augustin Chaboseau. Péladan, que mais tarde deixaria a Ordem por causa de divergências com Papus e fundaria a “Ordem da Rosacruz do Templo e do Graal”, defendia a ideia de que a arte tinha uma missão divina e era o melhor meio de efetivar a reintegração com Deus. A inclinação esotérica de movimentos artísticos como os pré-rafaelistas e os simbolistas aproximou-os naturalmente dessas fraternidades. Os artistas que as integravam buscavam uma reação aos excessos do romantismo e inclinavam-se, portanto, ao mundo do metafórico e do simbólico, mais naturalmente depurados. O poeta Charles Baudelaire, por exemplo, iria abraçar as idéias do místico Emmanuel Swedenborg e aplicá-las na sua produção poética. De uma maneira ou de outra, todos os grandes artistas que gravitavam em torno desses movimentos e estavam associados a essas ordens iniciáticas, principalmente Debussy e Satie na música, eram verdadeiros “místicos da arte”. A realização dos famosos “Salões da Rosa-Cruz”, marco maior do movimento simbolista, tenha sido talvez a maior realização de Sar Péladan nesse sentido.

     Lembremos que, nessa época, nossa Ordem ainda não se havia organizado na estrutura como a conhecemos hoje. Dentro da fraternidade, Satie viria a desempenhar uma função semelhante à de mestre de capela, e dessa maneira produziu obras voltadas para a ritualística da ordem, como Le Fils des Étoiles (O Filho das Estrelas), escrita sobre argumento do próprio Sâr Peladan, e Sonneries de La Rose+Croix (Sons da Rosacruz), que consta de três partes, a saber: Air de L’Ordre (Ária da Ordem), Air du Grand-Maître (Ária do Grande Mestre) e Air du Grand-Prieur (Ária do Capelão). Mais tarde, Satie iria fundar sua própria seita religiosa e aí continuaria a exercitar as excentricidades em que era pródigo.
    
     Quanto a Debussy, se por um lado efetivamente não chegou a produzir nenhuma obra intencionalmente esotérica, é evidente que seu pensamento musical e alguns de seus ideais artísticos e humanos estavam embebidos de uma filosofia superior, que se não chegou a manifestar-se plenamente em sua vida pessoal, foi apenas por força de um caráter impulsivamente independente e por vicissitudes de sua existência material.
Lembremos que Debussy chegou a defender a idéia da criação de uma “Sociedade de Esoterismo Musical”, numa tentativa de criar uma música menos acessível às massas que, segundo seu entendimento, eram incapazes de compreender a verdadeira arte. Indubitavelmente, como em todos os grandes espíritos, sua genialidade advinha de um hercúleo embate na dualidade da existência e se operava sob um temperamento algo felino e solitário, que o apartava de seus iguais. A um tempo forte e sensível, além de extremamente auto-crítico, a exemplo do que transparece na obra de grandes filósofos e pensadores, sua criação abriga uma incontestável simplicidade sob o véu da complexidade. Seus ideais, assim como sua criação artística, jamais se curvaram às necessidades materiais e nunca fizeram concessão ao gosto popular mediano ou àquilo que fosse simplesmente medíocre.

     É notável, e mesmo de cabal importância para entender sua personalidade e sua obra, admitir essa sua inclinação inelutável para os estímulos de inspiração encontrados nos mistérios do Oriente, do Egito e da Grécia Antiga. Prova irrefutável dessa atração são, por exemplo, os prelúdios para piano “Danseuses de Delphes” (Dançarinas de Delfos) e “Canope”, que pode remeter tanto à Canopo, deus da mitologia egípcia, à cidade de mesmo nome situada às margens do Nilo ou ainda à jarra canópica, espécie de vaso funerário utilizado no Egito dos faraós.

     É necessário ainda acrescentar que, renovando todo um sistema musical arraigado na cultura ocidental, Debussy exige a mais do ouvinte, no sentido de uma nova percepção do evento musical, e força sua atenção para a percepção da ‘música que há além da música’. Reorganizando e re-hierarquizando os valores sonoros fora dos limites dos arquétipos característicos tradicionais, sua música provoca o ouvinte e convida as sensibilidades mais aguçadas a experimentar fenômenos extra-sensoriais promovidos por sua paleta sonora. Não nos causa espanto perceber que algumas de suas composições, notadamente o célebre “Clair de Lune” e a extasiante “L’Isle Joyeuse” estão perfeitamente construídas na Proporção Áurea. Nesse sentido, devolve à música sua função primordial e indiretamente evoca um retorno à natureza, que com muita freqüência domina a temática de suas composições. Em outras palavras, o som, individualizado, readquire sua autonomia e seu valor intrínseco, semelhante àquele que os rosacruzes atribuem ao som vocálico, por analogia. Musicalmente falando, com essa atitude Debussy sacramenta o processo iniciado por Satie e descortina o horizonte para uma nova vanguarda musical.


Aqueles ao meu redor se recusam a aceitar que eu jamais poderia viver no mundo cotidiano das coisas e das pessoas. Daí a necessidade irreprimível que eu tenho de fugir de mim mesmo e sair em aventuras que parecem inexplicáveis – porque ninguém sabe quem é este homem, que talvez seja a melhor parte de mim! – Enfim, um artista é, por definição, alguém acostumado a viver entre sonhos e fantasmas...”
(Claude Debussy)

por Raul Passos, 22 de Setembro de 2010
(artigo a ser publicado na revista "O Rosacruz" do 4o. trimestre de 2010)

BIBLIOGRAFIA:
NICHOLS, Roger. Debussy Remembered. Londres. Faber and Faber. 1992.
ROBERTS, Paul. Claude Debussy. Londres. Phaidon Press. 2008.
ROBERTS, Paul. Images: The piano music of Claude Debussy. Portland. Amadeus Press. 1996.
SALZMAN, Eric. Twentieth Century Music: An Introduction. New Jersey. Prentice-Hall. 1967.


DISCOGRAFIA RECOMENDADA:
SATIE: Sonneries de la Rose+Croix (Oeuvres Complètes), Aldo Ciccolini (piano). EMI Classics.
DEBUSSY : Oeuvres Complètes pour Piano, Pascal Rogé (piano). London Records.
DEBUSSY : Pelléas et Mélisande (DVD), Orchestra and Chorus of Welsh National Opera, Pierre Boulez (regente), Deutsche Grammophon.