QUADROS
BUCARESTINOS II
1 – OS CIGANOS
(à Érica Santana)
A última réstia vai se deitar no ocidente
e meu espírito irrequieto, em brasa
– lume ansioso que já não sabe o que espera –,
se transfigura em chama na tentativa impossível de
plenitude.
O bulevar em torno é ruído, cinza e mácula.
Ali, onde uma solitária luz em vão fere a sombra,
os ciganos saem em alarde – dez, doze, quinze...
Transmutam a rua em insólito carnaval
Já não sei em que paragens deixei minha vontade
– Semente lançada ao vento sem cuidado,
foi dar um fruto ignorado em paisagens irreais –
E me abandono em sonho desperto à fantasia dos
manuches.
A lua, lume imperioso, bruxuleia entre os ramos
que vêm roçar o balcão de onde assisto ao
burburinho.
O cântico recomeça – dolente, misterioso, provocante
–
E eu... parece que escuto uma saudade ancestral
– Confissão secreta que não faço nem ao vento –
enquanto lá embaixo, em roda, eles ensaiam
antigas fórmulas de amor e de quebranto
Os eflúvios do tabaco vão buscar no breu que tudo
invade
uma pista que conduza ao outro lado
Tudo o mais parece ser engano
Ilusão, perfídia, desconsolo...
Quem dera minha alma achasse também,
nas mãos de uma zíngara indolente,
qualquer repouso ou consolação
Já não sei ser descuidado
Há muito perdi a inocência e o deslumbre
O que me instiga, arrebata e consome?
Nada, que não seja insípido e opaco
entendimento...
Ah, se ao menos nessa roda, nesse canto, nesse desconjuro
Minha voz encontrasse um qualquer papel
– Uma alegria verdadeira, uma mensagem a qual
carregar –
E eu já não seria o taciturno que, à espreita
– resguardado pela noite –,
nada mais pode que não seja devaneio...
... se tudo fosse diferente, e num arroubo de
certeza
extasiado e em transe eu me ergueria
e as minhas asas impossíveis, em tempestade
se lançariam incautas e certeiras pelo mundo
com a fúria de mil sortilégios
Mas que sonho há que dure para sempre?
O grito, o torpor e o encantamento se emudecem
Tudo retorna ao silêncio – gênese apocalíptico –
A noite se instala na estrada e em meu pensamento.
Uma solitária cigana se recolhe à tenda...
E enquanto recolho a cinza e as certezas
A última brasa do cachimbo se amalgama à
derradeira luz da rua.
BUCARESTE, 04/06/2017